10/01/2015

Uma Garota de Banda

É solitário, mas é viver de tudo, ler um livro. Até mesmo a história de outros. Ler na calada da noite parece que faz com que as cenas fiquem sobrevoando a gente. As voltas com “A Garota da Banda”, de Kim Gordon, a baixista do Sonic Youth - ela mesma e sua banda ícones da chamada música independente, que por 30 anos apontaram caminhos possíveis para jovens que sonhavam se tornar músicos e que no meio do caminho encontraram a desconstrução da indústria fonográfica. Ela começa botando o pé na porta, dando o tom da tristeza e frustração que não guarda mais para si, com o fim do seu casamento e de sua banda. Eu não fui ao último show do Sonic Youth, que aconteceu no festival SWU, no interior de SP. Se tivesse ido será que teria notado a Kim Gordon de costas para o público para não mostrar sua tristeza, irritação e frustração com o que estava acontecendo em sua vida e com sua banda? Não sei. Mas sei que a descrição que ela faz desta que foi a última turnê, e que abre sua autobiografia, é dolorida e dura. Traz, ainda, a marca da incompreensão, me parece, diante do desmoronar de uma história. É como se ainda procurasse entender o que tinha acontecido com ela ao escrever o livro, uma catarse que deve tê-la ajudado a encerrar um ciclo. Nas pouco mais de 280 páginas do livro, em capítulos bem curtos, a banda vai sendo revelada pouco, na verdade, em pitadas de uma narrativa que não é linear, nem temporal. Ela vai contando o que lembra e assim vai se revelando em inúmeras facetas. É o olhar dela, são as memórias delas, são as considerações dela sobre o que viveu. O começo nas artes, antes da banda, a guitarra que ganhou de presente e que serviu para chamar a atenção do então ex-guitarrista da banda Coachman, um rapaz 5 anos mais jovem, seu futuro marido. As ilusões criadas e aquelas que inevitavelmente projetamos sobre os outros; os traumas do relacionamento com um irmão psicótico; as bandas que seriam conhecidas mundialmente depois. Os traumas da traição, das promessas ditas e das não reveladas em voz alta, mas em gestos e ações que se perderam no tempo que não volta e que leva com ele os sentimentos mais íntimos, transformados. Ela fala também da insegurança de estar no palco e da certeza de que querer fazer aquilo, mesmo sem saber direito como fazer. Parece que é assim com boa parte das bandas que nos encantam, no final das contas. Os personagens reais vão se sucedendo: Kurt Cobain e Courtney Love, Neil Young, Iggy Pop, Kathleen Hanna, Ian Mackaye, Billy Corgan, Henry Rollins, pra ficar nos mais conhecidos; além de vários futuros nomes fortes das artes visuais, do feminismo, da moda, produtores, gravadoras,performers, fotógrafos...
E cidades e corações partidos. “Escrever sobre Nova York é difícil”. E vai listando algumas razões para encerrar o parágrafo assim: “É porque, sabendo o que sei agora, é difícil escrever sobre uma história de amor com o coração partido”. Isso já lá no 15º capítulo. Antes, tem coisas do tipo: “O casal que todos acreditavam que era de ouro e normal e eternamente intacto, que deu a jovens músicos a esperança de que eles poderiam sobreviver no mundo louco do rock-and-roll, agora era apenas mais um clichê de um relacionamento maduro fracassado – uma crise de meia-idade masculina, outra mulher, uma vida dupla”. O primeiro capítulo é bem pesado, mas traz ao mesmo tempo uma leveza quase fria, que parece se concretizar no instante em que ela se coloca diante de nós, nestas páginas, sem querer sentimentalizar. Parece que ela quis escrever logo esse negócio e encerrar esse capítulo. Tem mágoa sim, nestas páginas. E como não haveria de ter?! Porém, tem muito mais da serenidade de quem já resolveu a situação em si. Elegante, cool e até fria, ela dá tapas ferinos como quem decidiu contar uma história que ainda machuca como forma de superá-la. Tem também momentos hilários, como ela xingando Johnny Thunders – a quem ela, “uma garota branca, de classe média do sul da califórnia”, considerava “apenas um junkie insuportável” – por ele ter jogado açúcar em seu ovo! Rsrss. Ele olhou pra ela com “um olhar grosseiro, drogado e rock-na-roll” e a chamou de... “quatro olhos”. hahahaha. “Foi engraçado em alguns aspectos, mas foi também uma noite que reforçou minha sensação de que eu jamais seria descolada e estilosa em Nova York”, concluiu. É, ela ainda não era a Kim Gordon do Sonic Youth.
Passagens deliciosas, engraçadas, doloridas, divertidas, irritantes que passam pela transformação de Nova York em um verdadeiro frenesi comercial das artes, com artistas ficando oprimidos por seu próprio sucesso precoce, define ela. Foi a época em que ela “entrou” para o mundo das artes, como assistente de uma galerista. Até a página 103, ela vai e vem jogando seu olhar para uma cena de artes que ganharia o mundo. Thurston Moore aparece pouco. Sonic Youth não aparece. Até aqui, é basicamente o mundo dela. Ela fala, lógico, de ser mulher numa banda e num mundo masculino. De ser mulher, ser livre e de também querer mandar ver. Da comercialização do Girl Power do movimento riot grrls, que viu de perto. A busca pelo seu lugar. É disto que fala este livro, no final das contas. Os embates consigo e a sensação de não pertencimento que, contraditoriamente, leva a achar (ou inventar ou criar) o seu lugar. No meio disso tudo, o fim de um casamento. O vazio, a incapacidade de entender o que se passou, o choque diante dos fatos e a vontade de tentar desvendar como e quando o fim começou também estão aqui e ali. Porém, ela só nos entrega o que quer. E assim vai se mostrando tão mulher quanto qualquer mãe que viu o leite vazar quando é a hora de amamentar seu bebê. Vai aparecendo a Kim Gordon estilista, artista plástica, a produtora. Aparece pouco a esposa – talvez porque na vida deles não tivesse espaço (nem tampouco vocação) para uma “esposa”. Afinal, era de turnê em turnê; de estúdio para estúdio e tudo tentando conciliar com a agenda escolar da filha, que até os 10 anos seguia com eles nas viagens! A vida dela vai passando em reflexões sobre ser mulher, mãe e roqueira; entre ser isso tudo e ser a mulher do guitarrista da banda, diante dos demais músicos. Sobre Thurston ela fala apenas o necessário. Com classe, ela é firme, dura, carinhosa e amorosa. Acho que o tempo talvez sare a ferida, penso, inevitavel e incuravelmente romântica que sou! Termino o livro a noite. Sozinha como o comecei. E como sempre ao final de um livro que curto fica aquela sensação de silêncio externo enquanto perguntas e sensações reverberam por dentro. Quero uma biografia do Sonic Youth!